sábado, 1 de maio de 2010

"Cecília"

“O que desejo não me toma”. Esta frase havia ecoado durante todo o dia no pensamento de Cecília. Como o barulho da televisão ao fundo da cena principal de um filme, esta frase parecia apenas mais um devaneio, algo despretensioso no qual ela havia pensado ao longo dia. Porém nos últimos dias os devaneios tinham tomado tanto o seu pensamento, afligindo-lhe tanto, que este pareceu apenas mais uma desculpa para rever a sua sanidade. O que haveria de ser?
Embora Cecília sempre tivesse sido uma mulher muito frágil, inconstante e indecisa, muito cedo tomou a decisão de que moraria sozinha, o que causou grande surpresa entre seus familiares, que esperavam para ela uma vida pacata. Cecília tomou a decisão de que moraria sozinha, prestou concurso para um órgão público e, rapidamente, atingiu um bom patamar financeiro para comprar o que bem entendesse. Assim, tinha sua casa, seu carro, seu emprego bem remunerado, o que mais uma pessoa independente haveria de querer?
Conforme se aproximava a noite, as palavras que haviam impregnado seus devaneios o dia todo aumentavam de volume e exigia de Cecília uma concentração muito maior para tentar dispersá-los.
A noite era, para ela, a pior parte do dia. A escuridão que tomava o lado de fora da janela somava-se à de seu quarto, formando um clima mórbido, de sentimentos sombrios que causavam tanto desconforto que era muito fácil libertar todos seus sentimentos escondidos durante o dia. Uma liberdade óbvia e absurda.
“O que desejo não me toma”. Se antes, poder-se-ia comparar esta frase ao barulho da televisão ao fundo, naquele instante já não seria mais possível fazê-lo. Tratava-se, talvez, de um delírio, uma obssessão.
Cecília achou que poderia ser estresse. Afinal, a carga de trabalho na repartição havia aumentado e, profissional exemplar que sempre foi, tentava dar conta de todas as demandas que ali surgiam, mesmo com a precariedade estrutural característica de seu espaço de trabalho.
Resolveu, então, tomar um banho quente, para quem sabe assim, poder descansar, esquecer-se do estresse e pensar em algo que não fosse aquela misteriosa frase sussurada ao seu ouvido.
No banho, Cecília tentou relaxar, tocar seu corpo suavemente, sentir a água morna percorrer sua pele. Encerrado esse momento, sentou-se diante do espelho e começou a enxaguar o cabelo. Enquanto Cecília massageava seu cabelo, sentiu-se como que intimada pela voz que sussurrava a frase ainda mais alto, num tom cada vez mais imperativo. Fingindo não ligar para isto, ela penteava lenta e cuidadosamente seus longos e bem cuidados cabelos.
Todavia, sem saber muito bem por que, já muito próximo do fim de concluir seu trabalhoso penteado, resolve descer suas mãos até o púbis. Que coisa louca pensar em sentir prazer assim, sem tem porque, por razão ou outra coisa qualquer. Um gesto sutil, suave, fácil, reprimido, aos poucos foi tomando corpo, movimento, desejo. Nunca tinha sentido tal prazer, e agora sozinha, livre, olhava para si e tinha a fome de viver todo o somatório indefinido de possibilidades que sua existência lhe exigia.
Junto à sua experiência única, sentiu vontade de assanhar seus cabelos com a toalha. Não era um assanhamento qualquer. Quanto mais Cecília se assanhava, mais vontade sentia de fazê-lo e com uma força e intensidade cada vez maiores. Não seria preciso se olhar no espelho para perceber que seu aspecto naquele momento já diferia bastante daquele que apresentava cotidianamente. Estava asssanhada? Obviamente que sim. Mas que sentimento era este para uma mulher sempre tão elegante? E ao se perguntar isto, a primeira palavra que imaginou foi: liberdade.
Havia muito, por mais contraditório que lhe parecesse, a mulher independente não se sabia livre. Fazia alguns minutos que não mais ouvia aquela perturbadora frase. Diante de si, então, percebia-se como a garota que, logo cedo, em busca de sua independência, resolvera sair de casa. Desta vez, porém, frágil, sozinha e sedenta por vida.
Não queria abrir mão do que conquistara até ali. Porém, percebeu, pela primeira vez em muitos anos, que sair de casa havia sido seu último grito de liberdade e que aquela menina assanhada, nua, sozinha e agora livre que olhava para si tinha a fome de viver poesia. Assim, ainda sem roupa, Cecília andou por sua casa e a liberdade que a nudez lhe fazia sentir era experimentada com a mesma gula que afeta os famintos. Sem se aperceber, andou e dançou pela casa horas a fio. O que uma poetisa poderia fazer se não, despida de todas as roupas que havia carregado pesadamente há tempos junto ao corpo, dançar?
E, tomada pelo cansaço e pela sua liberdade, caiu, nua, no sofá da sala, com a convicção sentida de que nunca mais seria a mesma.

Caroline Souza e Emanuel Meireles